Um sonho

naquela tarde

peixes nadaram no meu sangue em dupla

refletidos num aquário de sol e púrpura

eu os ouvi dizendo: é um sonho! é um sonho!..

os peixes disfarçados de espécie humana

levaram-me ao fundo

até que eu mordesse a isca

no anzol das vogais elásticas

metálicas

ininteligíveis

acordei com escamas prateadas

um rabo reluzente

abraçada a um farol

enquanto Safo bipartida dizia-me entredentes:

é a vida!

é a vida!

soltando no mar os cabelos violetas

a lírica profunda da língua submarina

até o poema abrir seus olhos de plâncton…

Arte: “Peixe vermelho e uma escultura” – Henri Matisse

A solidão é um animal antigo

A solidão é um animal antigo, está presente como um fóssil, mesmo quando há camadas geológicas sobre ele. Há dias de festa e de multidão, há dias de riso e de sapatos vermelhos. Mas chega o dia em que aquele animal se mexe, vagaroso como um paquiderme, pesado como a nuvem, dolorido como a cicatriz que tem memória. E tão necessário que o embalamos como um bebê. Nesses dias, lembro-me dos poemas de Bukowski

Ele tinha algum prazer em ficar só. Ele tinha aquele quarto vazio, entupido de papel e de bebida, para onde corriam as mulheres. Bukowski não lhes negava nada, deitava-se com elas como quem se deita para ver o sol, não diretamente sobre os olhos, mas de viés, na virada, de bruços, que é um modo de aplacar a solidão se divertindo.

Tenho amigos que também enchem a cara quando se sentem sós. Há muito vodca nos seus hálitos e alguns poemas que explodem como se pegassem carona em toda aquela combustão. Conheço outros que nunca sorriem nem se dão. Enfeitam o nariz com piercings e insígnias. Medalhas de honra à solidão mais completa, aquela que dedicamos a nós mesmos, dedilhando guitarras de onde saem rocks com ecos de gargalhadas. E isso basta.


Tenho ainda amigos que nunca estão sós. Frequentam os bares, são assíduos nas festas, não recusam nem casamento. Casam-se para ter companhia ou enfileiram amores como tampinhas de garrafas. Esses amigos nunca estão sós porque se recusam à solidão cultivando a mesma companhia por anos ou frequentando o apê de alguma mulher que não amam, mas que lhes oferece o pescoço e as nádegas, depois um papo insosso que eles não se obrigam a ouvir porque estão sempre caindo fora. Tenho também amigas extremamente solitárias que levam o fora, depois de compartilhar nádegas e pescoços.


Eu também me sinto sozinha, como não? E fico olhando a solidão como o animal que acorda de um sono profundo. Há ruídos, alguma preguiça, mas ele abre os olhos e me encara, geralmente aos domingos, quando o sol brilha até aquele momento fatídico que aborta a semana. Então, sei que serei mais uma, outra e outra vez, na continuidade do tempo, abrindo a porta, dominando as ruas, tropeçando em conhecidos e desconhecidos, frequentando bares, enfileirando amores, colecionando tampinhas de garrafa, casando-me às vezes, deitando-me para ter companhia, dedilhando guitarras, escrevendo cartas, começando livros para dar conta do animal sob as camadas geológicas, aquele que embalamos como um bebê, sabendo que certas verdades não têm saída.

Então escrevo, enquanto afago o bicho.

(Célia Musilli/ 2010)

Sete cantos selvagens

(poema a quatro mãos de Célia Musilli e Paulo Sposati Ortiz)

PRIMEIRO CANTO

é do centro que nasce a nudez
e nos perfura a pele
o poro
a espinha do peixe
floresce
onde está enterrado o poema

é do centro do sorriso envolto em nuvem
numa enorme vírgula
que nascem o beijo e as amoras
árvore genealógica
animal e vegetal das águas

da superfície mais delicada
repleta de pavor
um cocar vem ao encontro do crânio
sua índia
seu tambor
e oboé
sinfonia selvagem
de pelos roçados no escuro

SEGUNDO CANTO

uma cama de algas
trança no oceano meu sonho futuro

conchas que cabem nas mãos
guardam sete segredos líquidos
ritmos marinhos
ou de maremotos
o nome das serpentes?
sí-la-bas

na floresta à esquerda do mar
a chuva lambe palavras
que o núcleo desnuda

TERCEIRO CANTO

o triângulo cobre parte do centro
charme da penugem
para quem soube do desejo das flechas

um sussurro no ar
e toca-se o tambor
amor, uma elegia de asas

paixão, uma gota na selva

duvidei das anêmonas
por causa de tua ausência
e toca-se o tambor
a violência da primeira vez
aponta o centro
de novo

QUARTO CANTO

na estação solstício
um batuque no ouvido planetário
rasga a rima
na embocadura
da mata urbana

no horizonte
a bola em chamas
quer nos espiar
mas queima
a palavra nos vira as costas

dois espíritos da floresta
despem folhas
o feiticeiro
gira a roda do poema
e canta

am rama am
am ram
ama

QUINTO CANTO

o velho balbucia entre as ervas
recolhe o oceano
perde o endereço
reencontra os plânctons

minerais e vegetais
eclodem da Terra
trespassam mãos
como o éter

magia
tudo nasce do centro
do côncavo ao convexo
fumaça

planeta indócil
de ancestrais e mamutes
amantes do vento

o sopro do barro
em mim
em você
nascentes múltiplas

SEXTO CANTO

feita a nossa viagem
com uma carta celeste
voltamos para casa
onde há rios
há peixes

o enorme dentro do menor
visões da íris
transcendência radical
sopros e imagens
a deslizar água afora

milagre
na ponta dos dedos
desenho de mundos
pedras
vocábulos
rotas ao redor da Lua

era tudo tão perto
de não se ver
velas de barco apontam
céus incendiados

tudo tão bárbaro
como a mecha
ao balançar de repente
e deixar entrevista
uma onda de cílios

SÉTIMO CANTO

no fim
recolhidos de olhar
celebramos
diante da fogueira
o futuro
centro de toda viagem

antes
toca-se o oboé
o tambor nos atravessa
para chegar
à nudez

se cresce e esvanece nosso espírito
somos águia e lince
provamos
da escuridão do mar

na chama irregular da madeira
a folha se espalha

sabemos
o ritual teve começo

um, mago
outro, sacerdotisa
num círculo de incendiar céus
eis o nome de tudo

EVOÉ
essa palavra queima
essa palavra queima
essa palavra

o espírito
levita

Devora

ele me lança ao círculo da liberdade de frente e de costas
enquanto seus dedos tocam piano nas minhas costelas
um blues baixa entre nós, download explícito

a noite entra pela janela
um raio brilha solitário em meu umbigo
o rock mexe os quadris
a cobra desprende os anéis nos meus pés em ponta
orgasmo cósmico
a dança, linguagem rítmica
a fuga ligeira para o outro mundo

um arco-íris instala matizes entre os dentes
a língua é pintada no instante selvagem
o olhar comprido de homem mede meu corpo
eu digo: “devora”
ele responde: “o desejo é o jogo da fome, baby”

(Célia Musilli/ São Paulo 2013)

Linha verde

quando o trem me engole, vejo a cidade nas entranhas

pessoas ardentes e outras com cara de veneziana

chiaroscuro, Trianon-Masp

a história e a arte frente a frente, os operários de Portinari piscam para mim no vagão

*

Consolação, quando leio esse nome, choro

penso nas viúvas, nas mulheres abandonadas, nos filhos sem pai

Consolação, nome de mulher no pós-desespero urbano
bombas imaginárias no peito em que pombas se agitam em sutiãs apertados
Consolação é o nome de quem perdeu tudo

*
Vila Madalena, a filha do fazendeiro caiu na boêmia

apartada para sempre das irmãs Ida e Beatriz, que não fumam nem bebem

agora, Madalena vive nos bares, nos copos,

nos corpos sobre os quais me debruço contando vivos e mortos que escutam blues

keep calm, baby

antes da estação do inferno, Rimbaud trepa comigo

(Célia Musilli/ São Paulo 2013)

Flores circulares

criar a fuga da consagração erótica
alimentar seu grande pássaro
provocar sua expressão de cervo, de lobo e de serpente
abrir o mistério do seu olho cinza
a asa adornada pela pluma viva
sabendo que o voo nunca é cerebral
pois existe entre nós um ritual xamânico

*
ouvir o crepitar do fogo
sentir o cheiro do cedro e da melissa
mergulhar num lago de vitória-régia
enquanto tento segurar os peixes e as palavras
a indefinição dos nomes
mordendo a maçã dos lóbulos das suas orelhas
comendo no espaço dos dedos o Aleph dos magos
o rumor das narrativas dos dias circulares
onde a manhã fecha-se sobre as nossas tardes
num oceano de vinho e de sorrisos
numa fonte monossilábica
num copo de amor de vidro transparente
num desejo líquido que vem do alto do Himalaia
escorrendo como a neve derretida
a ilusão do gozo
o erotismo solúvel do seu corpo
onde existem tantas mulheres
que estiveram ali antes de mim

*
sei que elas ainda se deitam no seu peito
e com sandálias de címbalos
dançam sobre uma ponte amorosa
onde passamos o tempo flutuante
ao encontro da pele
ao encontro das flores de veludo
que nascem da provocação de um jardim
permanentemente incendiado


[Célia Musilli, 30/07/2015]

Mon diable

cruza o ponto em que as pernas fecham

o côncavo disfarce do convexo

o pomo emaranhado em plumas

o bico feminino inflama

a ponta do chicote em línguas

o gozo do sacana em chamas

o luxo é um demônio gris

j’ai toujours aimé entre toutes cette lueur perverse

DISSONANTE

anda tudo tão igual como o saco de laranjas

o uniforme das enfermeiras

a caixa de ovos

o maço de cigarros

os guardas de trânsito

os pensamentos monótonos

os círculos de fumaça

os quiosques de sorvete

os homens que param para ver mulheres

fingindo que perderam documentos

e todo mundo sabe que é mancada…

por isso abandonei os estojos

as simetrias

os aros das bicicletas

as cartas de demissão

os contratos

os baralhos e as dentaduras

os elogios e as advertências

as contas de farmácia

fui atrás de um poema para explodir rebanhos…

quero desinventar a letra

matar o rococó

o barroco dos sentidos

os profetas dos costumes

volto quando desintegrar a língua

(Célia Musilli)

Foto: Claudia Rogge